Uma face do preconceito

Uma face do preconceito

Dona “mariinha” (assim mesmo, com dois “is”), dedicou boa parte de sua vida à catequese. Não raramente recebia alunos em sua própria casa, sempre pronta para oferecer um suco e um pedaço de bolo, e foi muito gentil quando auxiliou minha esposa a concluir um ciclo inacabado. Com caderno e lápis, também acompanhei aquelas aulas até a primeira comunhão da Márcia, realizada na igreja de Santa Isabel de Portugal. Nossa professora era sábia e às vezes contundente: “Vocês acreditam em Nossa Senhora, não é mesmo? Pois saibam que Jesus Cristo nasceu do seu ventre, por isso ela é uma santa e por ela temos que ter devoção”. Me lembro perfeitamente de várias passagens de suas aulas, e hoje emprestarei uma delas para ilustrar este comentário. “Prestem atenção: somos todos filhos de Deus, somos irmãos em Cristo; e quando alcançarmos a eternidade, no céu não há distinção entre ricos e pobres, brancos e negros, lá não existe isso; contam apenas as boas ações que fizemos neste mundo”. Pois bem. Durante a semana, tive uma conversa tocante e profunda com um amigo de longa data. Entre os assuntos, as lutas que nós, pais, enfrentamos para educar os filhos e como é reconfortante vê-los crescer e bater asas. Meu amigo é advogado, dono de exaustiva agenda diária, e tem o privilégio de estar a dois metros de seu filho diariamente – duas portas os separam no interior do mesmo escritório. Ele não disfarça o seu orgulho em perceber tamanho esmero do filho para o sucesso deste trabalho compartilhado que, em síntese, busca a justiça. Porém, em sua trajetória, houve um complicador: esse meu amigo é um cidadão negro. Por este fato ele suportou inúmeras cenas de constrangimento e incontáveis episódios de desprezo. Mas tudo isso não o tornou uma pessoa revoltada, ao contrário, ofereceu-lhe a chance de dar a outra face. De enxergar do alto, sob a proteção de Nossa Senhora Aparecida, santa da qual é devoto – ele nasceu em 12 de outubro –, como se repetisse, por dentro, em suas adversidades, “perdoai-vos”. Grande sujeito, esse meu amigo. Ele não precisa ser mais, porque já é; também não precisa fazer mais, porque já faz, e neste caso a favor de suas causas, espirituais e jurídicas. Coincidentemente, o Ipea divulgou esta semana uma pesquisa sobre racismo; vale a pena pesquisar os números, mas antecipo um diagnóstico: o brasileiro é preconceituoso – e mentiroso – até para falar sobre isso. Ser antirracista é uma oportunidade que temos que abraçar porque nos tornará mais dignos de chegar em paz, naquele lugar, no qual não há distinção alguma.         

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